Deixe-me te contar uma coisa:
Quando criei camaleao.co, lá em 2017, por mais que eu trabalhasse para romper a transfobia das pessoas, eu não sabia exatamente como era / é a experiência de uma pessoa trans em processos seletivos.
Claro que como jornalista estava sempre antenada e acompanhando os dados tenebrosos relacionados à empregabilidade trans. Mesmo assim, sentir na pele é outra história.
Foi então que comecei a coletar os dados de trans em busca de emprego e também a mapear o que outras empresas e ONGs do exterior, relacionadas à conectar pessoas trans com vagas de emprego, estavam desenvolvendo de boas práticas.
Nesse artigo, vou compartilhar três lições que eu gostaria de alguém tivesse me ensinado, naquela época, e, hoje, colocamos como processos dentro das nossas atividades diárias em camaleao.co.
Lição #1: Perguntar é Importante, Mas Escutar é o que Faz a Diferença!
No nosso formulário de captação de currículos tem um campo em que solicitamos que a pessoa trans possa nos dizer como ela quer ser identificada – qual nome gostaria que a chamasse para ficar mais claro.
Isso é muito importante porque…
- Nem toda pessoa trans retificou os seus documentos e o que está escrito nos seus documentos “oficiais” pode não ser como ela gostaria de ser chamada no seu dia a dia.
Outra coisa importante: nem toda pessoa trans pode / deve preencher esse campo – até porque é um formulário e, segundo a lei de proteção de dados, não podemos impor que uma pessoa, trans ou não, declare todos os seus dados.
Portanto, em caso de dúvida, principalmente, sempre perguntamos como ela deseja ser identificada.
E, a partir daí, usamos essa identificação em TODAS as nossas comunicações – inclusive, passamos aos nossos clientes que X pessoa solicita que a identifique como W.
E como falo em TODAS MESMO: desde o primeiro contato dizendo que recebeu o currículo até o feedback da entrevista em si. Depois também na contratação e inserção dela no dia a dia da sua empresa.
Além disso, atente também para e analise qual é o artigo que a pessoa está usando para se referir a ela.
Sim, se ela usa O / A. Pode parecer para você que isso é uma bobagem, mas você não sabe quais foram os processos e desafios superados por uma pessoa trans para usar, no seu dia a dia, o O / A.
Então nunca desqualifique a identificação de uma pessoa trans por intermédio das suas experiências – aliás, aqui, a sua vivência pouco importa.
E tem mais… Há pessoas trans que não se identificam nem com O / A, então por isso também é importante sempre perguntar as formas como você DEVE identificar uma pessoa trans.
Portanto a grande lição aqui é:
- Na dúvida, PERGUNTE;
- Não ache argumentos contra a resposta que recebeu;
- Escute mais do que fale;
- Siga as indicações de como uma pessoa trans te indica de como você deve identificá-la;
- Se errar, peça desculpas e atente-se para não pisar na bola de novo – ninguém é obrigado a suportar escorregões mais de uma vez por mais que saibamos que a sua empresa está em processo de aprendizado;
- Transfira toda essa lição como um processo para o seu RH e/ou todos os seus recrutadores e pessoas que irão entrevistar uma pessoa trans.
Lição #2: Antecipe Possíveis Problemas Transfóbicos
Você, mais do que ninguém, sabe como é a cultura da sua empresa, certo?
Então é preciso mapear todos os pontos de contato de uma pessoa trans com a sua companhia.
Por exemplo, se ela não tem os documentos retificados, como será o acesso dela na portaria? Ou seja, o que ela pode sofrer se ela tiver a aparência de Maria, mas os seus documentos, que ela vai apresentar para acessar o prédio da sua empresa, estão a intitulando como João?
Outro ponto:
Quem são as pessoas que vão entrevistar essa pessoa trans?
Elas já tiveram alguma reclamação interna de alguém que elas foram preconceituosas em um episódio Z?
Essas pessoas se engajam nos debates de diversidade e/ou se engajariam se tivessem? Essas pessoas têm posicionamentos firmes e explícitos contra o preconceito?
A lição aqui é:
- Mapeie todos os pontos de contato de uma pessoa trans com a sua empresa;
- Tudo isso vai refletir em como uma pessoa trans será tratada em um processo seletivo com vocês.
Lição #3: Na Dúvida, Faça Todos os Processos de Modo Online / Virtual
Enquanto escrevo esse artigo, muitas empresas estão trabalhando via home office por causa da pandemia.Porém algumas estão voltando para realizarem as suas atividades fisicamente.
Aqui, é importante considerar dois fatores, independente de estarmos ou não na pandemia, principalmente de modo presencial.
A pessoa trans que fará o processo seletivo com você tem dinheiro para pagar transporte e ir ao encontro da sua companhia?
Eu sempre achei que a empresa deveria pagar o transporte para uma pessoa, seja ela trans ou não, fazer um processo seletivo fisicamente. Você nunca sabe se quem está procurando emprego tem ou não dinheiro para sair de casa e ir até a sua empresa – e falo por experiência própria:
- Vaaaaaárias vezes, pedi dinheiro emprestado para amigos para poder fazer entrevistas que nunca deram em nada.
E a questão de ser uma pessoa trans fazendo o seu processo seletivo presencialmente piora quando nos deparamos com o seguinte dado: 90% das pessoas estão em situação de prostituição por falta de oportunidade no mercado de trabalho.
Então ter uma conversa honesta e aberta perguntando as possibilidades de uma trans encontrar você faz total diferença.
Se você acredita que a sua empresa não está preparada para receber uma pessoa trans para um processo seletivo presencial, use e abuse das ferramentas virtuais.
E mais: isso também é um indício para você que não adianta nada contratar uma pessoa trans se você não trabalhar para modificar o seu ambiente interno.
Contratar uma pessoa trans sem romper a transfobia interna pode te gerar:
- Processo judicial porque transfobia é crime no Brasil;
- Expor que a sua empresa é transfóbica e afastar as pessoas trans da sua empresa – até a sua companhia fazer o que deve ser feito para modificar a sua cultura interna.
A lição aqui é:
- Você precisa mapear os pontos de contato da sua empresa, falando de novo, com uma pessoa trans, para verificar se haverá transfobia durante o processo seletivo;
- Conversar com a pessoa trans entrevistada para verificar se ela consegue ir até a entrevista presencial que está solicitando;
- Se tiver dúvida, por favor, faça o processo seletivo de modo virtual;
- Fique atenta para o fato de que a contratação / processo seletivo é o comecinho de uma mudança interna mais intensa e estrutural – claro que isso também acontecerá a pequenos passos de formiguinhas e a longo prazo.
E se quiser a nossa ajuda para superar esses desafios, entre em contato com a gente por aqui.